sexta-feira, 13 de maio de 2016

5 DE NOVEMBRO DE 1988


São Mamede vivia um sábado festivo, dia de feira, muita gente nas ruas. Um frenesi de alegria agitava seus guizos por toda cidade numa perspectiva de civilidade e liberdade; um dia propicio para um comício partidário. A ninfa do igubas fervilhava no aspecto e nas veias de toda sua gente. As dificuldades e as mazelas da vida se perdiam no fundo dos recôncavos atormentados da memória.
As atenções de todos se voltavam para o carro de som que anunciava desde ás 8h:00 da manhã: “hoje, a partir das 10h:00, ali ao lado do mercado público, grande comício do partido X, com as presenças de... anunciava o nome dos oradores”, e adiantava: “o carro palanque já se encontra no local para a festa do povo; vai ser ali ao lado do mercado público, vamos lá minha gente!”.  Isso era rua acima rua abaixo.
Antes das 10h:00, horário previsto para a concentração, grupos de pessoas já faziam roda em volta do carro palanque para ouvirem os expoentes da política local. Os comentários eram os mais diversos e todos sobre política, sobre os candidatos que estariam presentes ao evento cívico, mas nenhum se referia as condições de agruras daqueles que ali estavam.
As 10h:00 e alguns minutos, o locutor oficial já em cima do carro palanque anunciava: “vai começar a festa do povo, venham se aproximem mais, venham   ouvir, Dr. Fulano, Dr. Beltrano e Dr. sicrano”. Em seguida, anunciava o primeiro orador: era um dos candidatos a vereador. A esse, sucedeu outros e mais outros.  Nos intervalos entre um e outro orador, o locutor anunciava: daqui a pouco vai falar, o Dr. Fulano, vai falar. Agora vou pedir o “V” da vitória e conta 1, 2 e... 3, todos levantavam os braços fazendo o “V”  e o locutor bradava:  vai ter passeata!
O doutor fulano era uma das estrelas de uma restrita constelação que perdera o poder em 1982, devido a uma ruptura de um dos importantes coronéis do clã político do sofrido igubas. Essa estrela ao falar para os correligionários esbanjava uma verve intelectualizada com frases de efeito e riqueza gramatical. Períodos curtos e orações perfeitas, numa torrente memorável. De modo, que diante do discurso primoroso daquela estrela, logo vieram às comparações na ótica dos partidários: é um Alcides Carneiro da vida, outros mais afoitos o elevavam ainda mais, dizendo: parece Rui Barbosa discursando. Ora, esses que faziam tal relação entre o orador e os dois tribunos, nunca na vida os ouviram falar. Era na realidade pura bajulação! Ao terminar o discurso, o doutor fulano foi ovacionado: valeu doutor, foi bonito! Diziam.
O locutor agora tentava animar a galera convidando os presentes para construção de um grito de guerra... O grito fora criado e todos o adotaram. Em seguida, pedia o “V” da vitória, ai, era aquela festa de braços erguidos. Para esquentar os ânimos ainda mais, o locutor perguntava: vocês querem passeata? Os presentes aos gritos, queremos! Nessas alturas, o comício já entrava pela tarde, o calor sufocante começava a desestimular alguns partidários.
Todavia, o locutor atento à fadiga de alguns correligionários e temendo o esvaziamento da festa cívica, solenemente anunciava o doutor beltrano. Esse de posse do microfone modelou a voz a tom sonante, sorrateiramente disse: eu sei que vocês querem ouvir o futuro prefeito – o povo, já ganhou, já ganhou, já ganhou – este (apontando para o doutor sicrano) nosso amigo vai governar a nossa terra, com o voto de vocês. Estou dizendo isso porque vocês vão sufragar o nome dele para tirar da prefeitura essa raça que não fez nada por nossa terra, elevando o tom da voz. O povo aplaude numa algazarra ensurdecedora. Os mais animados diziam: muito bem doutor, muito bem! Após essas palavras, o doutor beltrano se despediu do povo dizendo: até a vitória e passa o microfone para o locutor que logo perguntava: querem passeata? O povo – queremos!
Então, rapidamente, o locutor anunciava: agora vai falar. Vai falar aquele que vai salvar São Mamede, aquele que vai devolver a São Mamede as obras, o trabalho, o emprego. E diz, vamos ouvir o já eleito, o doutor sicrano. Aplausos, gritos de já ganhou e muitas, muitas palavras de ordem e o “V” da vitória. De repente fez-se silencio, o locutor gritava aos berros, vai falar, o doutor sicrano vai falar, fale doutor ao seu povo! De microfone na mão, transformado em salvador da Pátria, o doutor sicrano bradou a frase preparada e esplendidamente imortal: “meus amigos de São Mamede...” timidamente, as palavras aos poucos iam saindo e ganhando desenvoltura na boca do orador, que se esforçava muito para abrilhantar o seu discurso com orações cultas, porém, sem elegância! Quanto mais o doutor sicrano se esforçava para achar as palavras certas, mais o seu vocabulário se escasseava. Sem grande pompa findou o discurso, pedindo uma chance, uma oportunidade para governar São Mamede. Que era pobre e sabia o quanto o pobre passava, tinha certeza que ia fazer um bom governo, portanto, amigos, no dia 15 de novembro, votem no número “Y”, que é o meu número, obrigado a todos e até a vitória!
Quando o doutor sicrano terminou o seu discurso se aproximava às 14h: 00; o locutor já de microfone em punho perguntava: vocês querem passeata? Os partidários – queremos... A bandinha contratada para esse fim dava os primeiros acordes de vassourinha. O povo se agitava, formou um grupão e saiu pulando e bebendo, fazendo o ”V” da vitória, percorrendo as principais ruas gritando o nome do seu candidato. Vez por outra cruzava com alguns adversários: os xingamentos eram inevitáveis, os palavrões também, ás vezes, até faltavam adjetivos para desagradar os adversários. A passeata seguia sem destino e nem hora para acabar, o importante era ferir e denegrir os contrários, negando-lhes o direito de escolha, mas tudo isso, diziam: é democracia.
A festa política prometia varar à tarde inteira, a passeata já estivera em todas as ruas gritando palavrões – era sempre assim, todos os partidos tinham lá seus gritos de guerra, não havia respeito mutuo. Humilhar e degradar os adversários em suas passeatas era a norma – de modo que até exibições obscenas numa ridícula demonstração de insanidade política se assistia. De repente, o locutor aos berros gritou: vamos parar agora na frente da prefeitura. Empolgados pela bebida alguns oradores resolveram ali vituperar, foi um show à parte.
Por volta de aproximadamente 16h:00, a passeata voltou ao ponto de partida, ao lado do mercado público. O locutor já quase afônico anunciou o fim da festa. Os partidários que estiveram em toda festa, começaram a se dispersar buscando seus lares, outros, portanto, foram à procura de algum vereador para que lhe pagasse mais um pouco de bebida, porque ainda tinham vontade de beber, e agora como nunca, precisavam do estimulo da bebida para se embriagarem e se esquecerem do mundo real. Todo dinheiro da feira da família já fora gasto com os amigos de partido, durante a passeata, a fuga dos problemas era inevitável era a saída.
Entre às 16h00 e às 16h30min, viera o fato que desconcertou e gerou uma grande comoção em toda cidade. A frieza de um infame homicida ceifou de forma bruta e cobarde a vida que ainda florescia. Enlutou um povo pacato e ordeiro e sem escrúpulo atirou lama na cara da civilidade.  A dor do crime se espraiou e atingiu a compaixão dos corações fraternos; gemiam os vivos com o peito ferido vitimas da violência, lamentavam os mortos sem culpas que morreram na ação, e Deus a todos perdoava por amor. Francisco Daniel fora assassinado! Comentários na época deram conta de que o crime fora motivado por uma discussão banal sobre uma balança com ofensas recíprocas. A notícia varreu a cidade como um raio. A vítima era um comerciante em ascensão e bem conceituado. O criminoso um seu conhecido que vivia o subemprego no mercado público, e até então, não tinha histórico que desabonasse a sua conduta, mas pelo seu ato se inscreveu na extensa lista de monstros que ajudaram engrossar a estatística dos psicopatas. Após o crime, a mente do assassino quis ensina-lhe a vereda da fuga, mas logo encontrou a caminho das grades; a polícia numa ação rápida deu-lhe o destino certo, a prisão. Agora o assassino tinha pela frente os tribunais, a vítima a mansão dos mortos. Assim, foi o dia 5 de novembro de 1988.


domingo, 8 de maio de 2016

A DISPOIS DAS INLEIÇÃO


Autor: CHICO DE AMARO


Seu doutô eu venho aqui
Pruque tenho nicissidade
De cunversar cum senhor,
Inspere tenha bondade
Pra ovir minha razão.
                        
Apois lá na minha terra
Adonde sou morador
As coisa tá toda errada
Eu vou contar pru senhor
O principo da questão.

É uma questão milindrosa
Pruque involve otoridade
Mas Cuma sou cabra macho
Vou contar toda verdade
Cuma tudo aconteceu.

O prefeito de minha terra
Qui o povo nele votou
Prometeu o mundo e o fundou
Mas nem cum o fundo chegou
Adispois que se elegeu.

O pobe é qui nem iscada
Pru político se atrepar
E quando tá lá inriba
Pra baixo num quer mais oiar
Para quem lhe apoiou.

No período da inleição
Ele é bom e é cortez
Faz favor a todo mundo
E diz: eu sou pru vancês
Na alegria e na dor.

Mas dispois qui a inleição passa
O homi vira uma ferra,
Não quer mais saber do povo
Já não é mais Cuma era
Nem faz o qui prometeu.

Torna-se um bicho do mato
Feroz qui nem um lião
Se o pobe lhe pede uma coisa
Ele solta um palavão
Pois do pobe se insqueceu.

O pobe não tem mais vez
E não é mais arricibido
Cum sorriso e cum abraço
Se torna um homi insquicido
Inté a ôta inleição.

E lá vem a inleição de novo
O pobe agora é alembrado
O canidato lhe abraça
Se fazendo de inducado
E inté lhe aperta a mão.

E é nesse aperto de mão
E é nesse abraço doutô
Qui o politico se escancha
No homi trabaiador
Cum toda sua isperiença.

E diz: cumo vai à famia?
O pobe diz – de rim pra lá,
Inté minha fia mais veia
Já deixou de estudar
Pru farta de assistênça.

Ai o político diz:
Pruque vancê não me procurou
Eu tômem  sou seu amigo
E pra isso aqui estou
Pra agora lhe ajudar.

Ele aperta a mão do pobe
Cum certo nojo doutor
E chama inté de amigo
Com um tom de traidor
E a conciênça de cão.

E o pobe, esse homi
Qui só sabe trabaiar
Não compreende a malíça
Dêsse político vulgar
Sente inté sastifação.

E dali sai todo feliz
E in casa diz a mulé:
Oje eu tive uma prosa
Inte tomei um café
Cum o douto seu prefeito.

Não é doutô qui o pobe
Vai se inganar ôta vez
Votar em quem num merece
É uma grande insensatez
E farta inté de respeito.