Nas
pesquisas que faço sobre as manifestações populares, procuro mirar naquelas que
pouco aparecem nos estudos mais frequentes do nosso espírito histórico. E foi
numa dessas felizes garimpagens, que encontrei num sebo o livro Cantigas de
Cego, obra da verve do musicólogo Domingos de Azevedo Ribeiro, publicada em
1992, no finalzinho do século XX, aqui na filha das Neves! O livro é um
registro trágico de “um drama humano”. Segundo Domingos de Azevedo, “estes
seres humano, marginalizado pela sociedade, andam perambulando pelas ruas e
portas de Igrejas, suplicando a caridade pública, como parcela esquecida da
comunidade, embora legítima na sua condição de seres humanos, e, portanto,
reveladores da dívida social...” Talvez pudéssemos até chamá-los de vítimas da
exploração de uma tirania nula, abjeta, que tem manipulado o direito e
envenenado a justiça, para assegurar desse modo, a abundância da desigualdade
perversa, garantindo melindres aos donos das mansões ocas de humanidades o
direito infame de se proverem dos míseros barracos.
O meu
encontro com esse livro foi cheio de emoção! Porque ali diante dos meus olhos
estavam retalhos de histórias tristes que se repetiram por eras, por descasos e
omissões, injustiças! Lembrei-me então da história do cego de Jericó. Estava,
portanto, Jesus passando por Jericó, e com Ele uma multidão sedenta por justiça
o seguia para ouvir os seus ensinamentos. Porém, chegando o filho do Deus supremo
e os que o acompanhavam ao final da cidade, sentado estava um cego sobre o
caminho do Salvador. (o cego de Jericó).
Aquele homem
cego, ouvindo os murmúrios daquela multidão, logo percebeu que o Mestre, Jesus
de Nazaré, estava a passar por ali, logo se pós a gritar para que o Senhor o
ouvisse. “Jesus, filho de Davi, tende compaixão de mim”. Sem ouvi-lo devido o
tropel da aglomeração em sua volta, Jesus seguia em frente. A multidão então se
incomodou com os gritos e passou a repreendê-lo para que ficasse quieto. Mas o cego não se sujeitou aos pedidos e
voltou a gritar com muito mais força. Jesus, o senhor, então pede para que o
cego se achegue mais perto.
“Jesus parou e disse: “Chamem-no”. E chamaram o cego:
“Ânimo! Levante-se! “Ele o está chamando”. (Marcos
10.49). Sem cintilar, o
homem cego se levanta confiante tira sua capa e vai até Jesus, que prontamente
lhe pergunta: “O que queres que Eu te faça?” O cego cheio de esperança e fé
respondeu: “Senhor eu quero enxergar”. “Mestre, eu quero ver!” (Marcos 10.51).
E vendo Jesus quão era a credulidade daquele homem lhe disse: “vai a tua fé o
curou”. Bartimeu, o cego de Jericó, depois de restaurar suas vistas seguiu
Jesus. (marcos 10.52).
Foi assim,
também, o que eu disse: Senhor, eu quero ver! Quando me deparei com as páginas
31 e 32, daquele livro. Aquelas páginas já desfiguradas pelo tempo, mas impregnadas
de uma verdade absurda, fizeram-me lembrar das missões do Frade capuchinho Frei
Damião de Bozzano, realizadas em São Mamede, nas décadas de 60 e 70 e início da
de 80, século XX.
Atraídos
pelas Santas Missões, os oportunistas de plantão e de todas as verves,
apareciam para tirar vantagens indevidas: comerciantes eventuais, ambulantes,
políticos nababos que queriam se aproveitar da popularidade do missionário;
outros por insensibilidade coletiva e insânia política, eram compelidos a
esmolar: pedintes, cegos e aleijados... Além, claro, do sincretismo religioso que
não deixava de se fazer presente, uma delicia insalubre para os crédulos
divergentes que se arvoravam legítimos doutores da religião.
O cego João Cassimiro, residente
em São Mamede, nos anos 40, recitava nas feiras livres e nas portas das Igrejas
as quadras seguintes, acompanhado de uma viola:
O padre é
feito
Pru altá
O negô é
feito
De escuro
Meu moço
Me dê uma
esmola
Me traga
dinheiro puro
Agradeço a
sua esmola
De todo o
meu coração
Amanhã eu
quero mai
Com toda satisfação.
Outras quadras do mesmo cantador cego:
Lá no reino da gulora
Jesus lhe dá
perdão
Se você mim
dê uma esmola
Com toda
satisfação.
Agradeço a sua esmola
Em nome de
Deus, Senhor
Quarta-feira
tô aqui
Prá receber
mai seu douto.
Outro cego
de São Mamede (PB), chamado João Pretinho acompanhado de Reco-Reco, improvisava
as seguintes quadras:
São Joaquim
me confesso
Que não
nasci prá trabaiá
Um punhado
de negrote
Brinca no
lado de lá.
Por isso lhe peço
Uma esmola
Com santa satisfação
Amanhã
recebo mai
Estendendo a
minha mão
Agradeço sua esmola
Que veio
De muito
longe
Trazido num
caçuá
Do senhô
para mim dá.
Cazuza do Oiteiro, cego, também residente em São Mamede (PB) improvisava, as quadras seguintes, e o improviso era acompanhado por uma viola e quem o acompanha era o seu filho com um Reco-Reco
Eu sou Cazuza do Oiteiro
Tanto bato como beijo
Meu patrão me dê
Uma esmola
A este pobe sertanejo
Agradeço a sua esmola
Que veio aqui e agora
Nossa Senhora das Dores
Santa muito milagrosa.
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