São
Mamede vivia um sábado festivo, dia de feira, muita gente nas ruas. Um frenesi
de alegria agitava seus guizos por toda cidade numa perspectiva de civilidade e
liberdade; um dia propicio para um comício partidário. A ninfa do igubas
fervilhava no aspecto e nas veias de toda sua gente. As dificuldades e as
mazelas da vida se perdiam no fundo dos recôncavos atormentados da memória.
As
atenções de todos se voltavam para o carro de som que anunciava desde ás 8h:00
da manhã: “hoje, a partir das 10h:00, ali ao lado do mercado público, grande
comício do partido X, com as presenças de... anunciava o nome dos oradores”, e
adiantava: “o carro palanque já se encontra no local para a festa do povo; vai
ser ali ao lado do mercado público, vamos lá minha gente!”. Isso era rua
acima rua abaixo.
Antes das
10h:00, horário previsto para a concentração, grupos de pessoas já faziam roda
em volta do carro palanque para ouvirem os expoentes da política local. Os
comentários eram os mais diversos e todos sobre política, sobre os candidatos
que estariam presentes ao evento cívico, mas nenhum se referia as condições de
agruras daqueles que ali estavam.
As 10h:00
e alguns minutos, o locutor oficial já em cima do carro palanque anunciava:
“vai começar a festa do povo, venham se aproximem mais, venham
ouvir, Dr. Fulano, Dr. Beltrano e Dr. sicrano”. Em seguida, anunciava o
primeiro orador: era um dos candidatos a vereador. A esse, sucedeu outros e
mais outros. Nos intervalos entre um e outro orador, o locutor anunciava:
daqui a pouco vai falar, o Dr. Fulano, vai falar. Agora vou pedir o “V” da
vitória e conta 1, 2 e... 3, todos levantavam os braços fazendo o “V” e o
locutor bradava: vai ter passeata!
O doutor
fulano era uma das estrelas de uma restrita constelação que perdera o poder em
1982, devido a uma ruptura de um dos importantes coronéis do clã político do
sofrido igubas. Essa estrela ao falar para os correligionários esbanjava uma
verve intelectualizada com frases de efeito e riqueza gramatical. Períodos
curtos e orações perfeitas, numa torrente memorável. De modo, que diante do
discurso primoroso daquela estrela, logo vieram às comparações na ótica dos
partidários: é um Alcides Carneiro da vida, outros mais afoitos o elevavam
ainda mais, dizendo: parece Rui Barbosa discursando. Ora, esses que faziam tal
relação entre o orador e os dois tribunos, nunca na vida os ouviram falar. Era
na realidade pura bajulação! Ao terminar o discurso, o doutor fulano foi
ovacionado: valeu doutor, foi bonito! Diziam.
O locutor
agora tentava animar a galera convidando os presentes para construção de um
grito de guerra... O grito fora criado e todos o adotaram. Em seguida, pedia o
“V” da vitória, ai, era aquela festa de braços erguidos. Para esquentar os
ânimos ainda mais, o locutor perguntava: vocês querem passeata? Os presentes
aos gritos, queremos! Nessas alturas, o comício já entrava pela tarde, o calor
sufocante começava a desestimular alguns partidários.
Todavia,
o locutor atento à fadiga de alguns correligionários e temendo o esvaziamento
da festa cívica, solenemente anunciava o doutor beltrano. Esse de posse do
microfone modelou a voz a tom sonante, sorrateiramente disse: eu sei que vocês
querem ouvir o futuro prefeito – o povo, já ganhou, já ganhou, já ganhou – este
(apontando para o doutor sicrano) nosso amigo vai governar a nossa terra, com o
voto de vocês. Estou dizendo isso porque vocês vão sufragar o nome dele para
tirar da prefeitura essa raça que não fez nada por nossa
terra, elevando o tom da voz. O povo aplaude numa algazarra
ensurdecedora. Os mais animados diziam: muito bem doutor, muito bem! Após essas
palavras, o doutor beltrano se despediu do povo dizendo: até a vitória e passa
o microfone para o locutor que logo perguntava: querem passeata? O povo –
queremos!
Então,
rapidamente, o locutor anunciava: agora vai falar. Vai falar aquele que vai
salvar São Mamede, aquele que vai devolver a São Mamede as obras, o trabalho, o
emprego. E diz, vamos ouvir o já eleito, o doutor sicrano. Aplausos, gritos de
já ganhou e muitas, muitas palavras de ordem e o “V” da vitória. De repente
fez-se silencio, o locutor gritava aos berros, vai falar, o doutor sicrano vai
falar, fale doutor ao seu povo! De microfone na mão, transformado em salvador
da Pátria, o doutor sicrano bradou a frase preparada e esplendidamente imortal:
“meus amigos de São Mamede...” timidamente, as palavras aos poucos iam saindo e
ganhando desenvoltura na boca do orador, que se esforçava muito para
abrilhantar o seu discurso com orações cultas, porém, sem elegância! Quanto
mais o doutor sicrano se esforçava para achar as palavras certas, mais o seu
vocabulário se escasseava. Sem grande pompa findou o discurso, pedindo uma
chance, uma oportunidade para governar São Mamede. Que era pobre e sabia o
quanto o pobre passava, tinha certeza que ia fazer um bom governo, portanto,
amigos, no dia 15 de novembro, votem no número “Y”, que é o meu número,
obrigado a todos e até a vitória!
Quando o
doutor sicrano terminou o seu discurso se aproximava às 14h: 00; o locutor já
de microfone em punho perguntava: vocês querem passeata? Os partidários –
queremos... A bandinha contratada para esse fim dava os primeiros acordes de
vassourinha. O povo se agitava, formou um grupão e saiu pulando e bebendo,
fazendo o ”V” da vitória, percorrendo as principais ruas gritando o nome do seu
candidato. Vez por outra cruzava com alguns adversários: os xingamentos eram
inevitáveis, os palavrões também, ás vezes, até faltavam adjetivos para
desagradar os adversários. A passeata seguia sem destino e nem hora para
acabar, o importante era ferir e denegrir os contrários, negando-lhes o direito
de escolha, mas tudo isso, diziam: é democracia.
A festa
política prometia varar à tarde inteira, a passeata já estivera em todas as
ruas gritando palavrões – era sempre assim, todos os partidos tinham lá seus
gritos de guerra, não havia respeito mutuo. Humilhar e degradar os adversários
em suas passeatas era a norma – de modo que até exibições obscenas numa
ridícula demonstração de insanidade política se assistia. De repente, o locutor
aos berros gritou: vamos parar agora na frente da prefeitura. Empolgados pela
bebida alguns oradores resolveram ali vituperar, foi um show à parte.
Por volta
de aproximadamente 16h:00, a passeata voltou ao ponto de partida, ao lado do
mercado público. O locutor já quase afônico anunciou o fim da festa. Os
partidários que estiveram em toda festa, começaram a se dispersar buscando seus
lares, outros, portanto, foram à procura de algum vereador para que lhe pagasse
mais um pouco de bebida, porque ainda tinham vontade de beber, e agora como nunca,
precisavam do estimulo da bebida para se embriagarem e se esquecerem do mundo
real. Todo dinheiro da feira da família já fora gasto com os amigos de partido,
durante a passeata, a fuga dos problemas era inevitável era a saída.
Entre às
16h00 e às 16h30min, viera o fato que desconcertou e gerou uma grande comoção
em toda cidade. A frieza de um infame homicida ceifou de forma bruta e cobarde
a vida que ainda florescia. Enlutou um povo pacato e ordeiro e sem escrúpulo
atirou lama na cara da civilidade. A dor do crime se espraiou e atingiu a
compaixão dos corações fraternos; gemiam os vivos com o peito ferido vitimas da
violência, lamentavam os mortos sem culpas que morreram na ação, e Deus a todos
perdoava por amor. Francisco
Daniel fora assassinado! Comentários na época deram conta de que o
crime fora motivado por uma discussão banal sobre uma balança com ofensas
recíprocas. A notícia varreu a cidade como um raio. A vítima era um comerciante
em ascensão e bem conceituado. O criminoso um seu conhecido que vivia o
subemprego no mercado público, e até então, não tinha histórico que desabonasse
a sua conduta, mas pelo seu ato se inscreveu na extensa lista de monstros que
ajudaram engrossar a estatística dos psicopatas. Após o crime, a mente do
assassino quis ensina-lhe a vereda da fuga, mas logo encontrou a caminho das
grades; a polícia numa ação rápida deu-lhe o destino certo, a prisão. Agora o
assassino tinha pela frente os tribunais, a vítima a mansão dos mortos. Assim,
foi o dia 5 de novembro de 1988.
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